O corpo humano quando despenca de grandes alturas provoca um ruído estranho, parecido com uma bandeja de ovos que se espatifa ou como um saco de cimento que cai e solta o seu conteúdo. Enquanto estudava na UFPE, ao longo de duas graduações e duas pós-graduações, transitando pelo CFCH, CAC e CE, era inevitável não saber dos casos de suicídios que aconteciam no prédio do primeiro centro citado. Vi, pessoalmente, pelo menos dois. Um no longínquo ano de 1997, a biblioteca do CFCH ainda funcionava no 5º andar e os suicidas ainda pulavam do lado da rampa da Área I. O baque foi seco e ouvimos ao mesmo tempo os gritos de quem passava no caminho entre os três centros. Era um rapaz, que caiu em cima de um dos carros estacionados próximo a subida da rampa, que depois foi interditada definitivamente. De lá de cima deu para perceber os olhos arregalados, os braços e pernas desconjuntados, enquanto os gritos das pessoas na biblioteca pululavam ao redor do meu ouvido.
O outro caso que presenciei foi quando já cursava Letras e estava tão empolgado com o curso que frequentemente passava o dia pelo campus lendo. O problema é que o estudante de graduação é sempre um liso e minha alimentação se resumia a pastéis e hambúrgueres, quando tinha um trocado a mais, até porque almoçar mesmo era um luxo numa época em que não havia sequer o precário R.U. que só passou a funcionar quando eu já estava terminando o mestrado.
Era por volta de 13:45 e eu estava comendo um pastel enquanto pensava numa leitura que havia feito de Kierkegaard — veja bem, logo o Desespero humano —, e todos vimos um vulto percorrer uma faixa descendente do prédio e acabar num baque rouco, vejam bem de novo, em cima da nova biblioteca, que estava sendo construída no térreo. Logo, a Guarda Universitária apareceu e fechou um dos lados do prédio, até a chegada da Polícia Civil e do IML.
O terceiro caso foi mais dramático, porque não houve baque, alarido, nem nada. Havia chegado cedo para a aula do mestrado, que começava às 8:00, mas antes iria passar no Centro de Educação, creio que para entregar um livro. Era por volta das 6:50 e segui pelo caminho no qual havia sido construído recentemente uma área de convivência. Ali estavam, perplexas, umas alunas de Pedagogia, com o telefone em mãos, tentando entrar em contato com a PM. Na área de convivência, o corpo todo destroçado, de uma moça que sequer estudava na UFPE, depois soubemos. Por mais que tenha trabalhado no IML uma década antes, me assustou aquilo.
Como alguns sustos que ainda guardo comigo, como aquele de quase ter sido atropelado por um ônibus, aos 5 anos de idade, quando corri para pegar minha pasta que havia caído, o grito da minha irmã que, sabe-se lá como, num átimo, me agarrou e caímos ambos no meio-fio, olhando os rostos das pessoas assustadas no ônibus que ainda continuou buzinando.
Depois de tantos dias acompanhando minha mãe aconteceu algo parecido quando eu mesmo saí do hospital em 2021: voltar às ruas parece que nos joga em uma espécie de perplexidade e sobressaltos. Todos os ruídos parecem mais altos, todas as pessoas parecem insuportavelmente mais presentes, o sol, mais quente, o cansaço absurdamente maior do que tudo.
Alguns etimologistas divergem, mas chutam que a palavra “susto” teria se originado do latim “surctus”, que é uma síncope do latim vulgar para “surrectus”, (surgido, levantado subitamente), por sua vez, variação de “surgere” (levantar-se, erguer-se, surgir). Veio-me logo à mente de que quando nos assustamos o primeiro reflexo é de nos recompormos, talvez de surgirmos novamente para a realidade. Lógico que não deixei de relacionar à “ressurreição” e à possibilidade de grande parte da humanidade adorar um Deus assustado frente à necessidade de retornar à sua Casa depois de uma missão que redundou em sua morte (?) enquanto todos ficam tremendamente impregnados de outro susto, de vê-lo andando com suas cicatrizes em Emaús antes de sua ascensão — que também é um ato de erguer-se, pensando direitinho.
Porém, há uma série de outras coisas que me provocam sustos peculiares. Quando eu vou reler minhas coisas, fico sobressaltado de como consigo alinhavar palavras e raciocínios e frequentemente meu próprio estilo também me assusta. A sensação de estranheza e despertencimento que surge vem como uma perplexidade de alguém que não se reconhece (mais) naquilo que já foi disposto. Não sei se isso faz parte de uma síndrome de impostor ou é alguma espécie de modéstia que nos salva da empáfia.
Perceber as coisas ao meu redor enquanto vou para o trabalho ou retorno para casa gera uma espécie de susto que me faz questionar o porquê de ser tão detalhista e observador. Hoje em dia já não faço mais tantas anotações, por desleixo e preguiça, mas também por medo de me sentir terrivelmente honesto com o mundo no sentido de julgá-lo com uma severidade desmedida. Talvez o mundo não mereça ou quem sabe eu que realmente mereça paz, largando mão desse juízo que, muitas vezes, é inútil.
Há alguns anos escrevi um conto no qual eu brincava com “sobressaltos” e “sobre saltos”. Um trocadilho bobo, no final, talvez a própria história não convença (sim, sou bem severo com minhas coisas também), mas leio ali, assustado isso: “Sentir essa tremedeira era como se sentir na beira de um parapeito e estivesse prestes a pular.”
Às vezes só nos resta ouvir o eco do próprio grito. E isso é assustador.